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Aqui
eu
habitei

Revelando uma relação inequívoca de amor com o ato de fotografar, Jarlison Gardiman nos oferece os espaços urbanos onde habita, com seus personagens como Avô João e os sobrinhos Ruan, Luan e Natan. Enquanto as meninas de Manoel Peçanha, na intimidade com a mãe e o jardim, são flagradas em um jogo de captura para constituir a coleção de instantes do pai fotógrafo cego que, refletido em suas pupilas, afetuosamente acompanha suas jornadas diárias. Enquanto a solidão do cão errante no asfalto do bairro de Sayonara Reis, é sinal de liberdade e contraponto da delicadeza do enlaçamento com as mulheres da família, em intencional ode à alegria de estar viva: “Tem alegria, aqui eu habito” (Sayonara Reis). 

 

Com a boneca que ela mesma põe escondida atrás da planta, espiando; com o gato que descobriu olhando-a lá de cima da escada; com o jovem de quem chegou tão perto e ao tocar-lhe o rosto isolou um olho; com o branco dos próprios olhos cegos que escancara, Geo Santos testemunha um olhar real sobre o mundo do qual nos oferece imagens. Já as lacunas forjadas por Kellezy Barbosa alargam tempo e espaço, revelando um olhar comprido sobre casas tão distantes (e como ela as torna pequenas!), fechadas as janelas! E sobre uma só, pai e mãe tão perto que a fotógrafa captura-lhes os afetos! E sobre os longínquos anos 70, enquanto a amiga traz para a espessura do toque a imagem projetada que aderiu à parede, Kel é flagrada pintando o olho em autorretrato. E enquanto Maycon Machado suspende o tempo da vila, da cidade e do barco, até mesmo do pescador que, de cabeça baixa e rosto escondido, espera, a fabulação tece os fios da expectativa de que alguém abra a janela, que a feira volte, que o homem continue. Diante do farol, o fotógrafo, e também os peixes o esperam.

 

O limiar onde a ponta do telhado encontra o céu e a borda do papel interrompe o fio infinito das palavras onde não cabem o amor eterno. “Ali um grande amor, amor sem limite, amor sem fim, amor jamais esquecido, amor verdadeiro e sincero. Te amo do fundo do meu coração”: as costas da foto da foto de Elias Barcelos. O tear de partes de objetos parece compor a subjetividade de um autor que se anuncia como vulto atrás da porta, frase-enigma que tentamos entender enquanto sentimos o toque. Enquanto tentamos compreendê-la, a obra nos toca, convidando-nos a entrar por uma de suas portas. 

 

Já as histórias de António Fadini estão na sola dos pés, nos cordéis, nos álbuns e na máquina fotográfica, recente instrumento que lhe permite habitar o corpo dos pés à cabeça. Enquanto o envelopa com narrativas, encontra lugar de morada. E como ele mesmo diz, habita ali, nos objetos, na escrita e nas imagens. E como também diz Jarlison Gardimam, torna-se, assim, um habitante de si. É como Jonatas Sobral, que habita o céu, o sonho, o caminho, pois homem disposto a caminhar.“Deus, o que estou fazendo, eu não vou parar, eu vou até o fim”, diz o homem feito de jornadas. “Minha mãe me fez ver que eu precisava habitar um mundo novo”. “A vida é uma prova, a gente só não sabe com quantas questões” (Jonatas Sobral).

 

Um fotógrafo não se faz de uma hora para outra. É preciso reconhecer-se, pensar-se. É preciso autorizar-se. Assim como em outras modalidades de arte, o sujeito se nomeia. Os fotógrafos cegos da Escola de Fotógrafos Cegos estão no segundo ano de formação e, para além da primeira exposição “Quando Fecho os Olhos Vejo Mais Perto”, com obras por módulo de ensino, “Aqui Eu Habitei” com conjuntos de autor, dá um passo em direção à construção de uma identidade autoral de cada um. 

 

O que podemos extrair, deste habitar imagens que cada um revela, é a importância do ato de fotografar para a pessoa cega. A aderência a esta coisa lisa e sem espessura que se captura ao enxergar, mas pode ser experienciada no ato do qual fazem parte, com entusiasmo, partilha e alegria, assim como se habita a linguagem e o mundo que esta forja enquanto o teor onírico e os enquadramentos ímpares dos autores nos remetem a um ponto de convocação da fantasia e limite do dizer.

 

Rejane Arruda.

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